Redu é uma aldeia loucamente mágica. Um autêntico feitiço para
quem gosta de literatura. Está para a Bélgica, como Óbidos se encontra para Portugal.
Embora diferentes. Cada uma com o seu charme e encanto.
Fica nas Ardennes, a meio caminho entre Charleroi e o Luxemburgo.
Longe do artificialismo obscuro da urbe, a pequena aldeia verde surge quase perdida
no meio do campo, entrecortada por pequenos montes e vales.
Tínhamos saído de Bruxelas, lugar onde visitámos a Casa Hergé,
pai do Tintin, em Louvain-la-Neuve, a escassos quilómetros da capital. Chegados
a Redu, ao final de uma tarde de agosto, já com a luz do astro-rei a aconchegar-se
no horizonte, parecia que tínhamos tocado numa outra atmosfera. Direi até,
estávamos numa aerosfera completamente díspar. Sentíamo-nos leves, ligeiramente
voláteis, mais que o álcool. Eramos quase éter. A claridade do ambiente apoderou-se destes viajantes e, rapidamente, fez esquecer as moules marinières, as frescas cervejas belgas, o museu da batata frita, os passeios de barco pelos canais ou o doce chocolate,
degustados em Bruges, a Veneza do norte.
Redu. Ai, Redu. Até o nome é diferente. Em cada
esquina, recanto ou esconderijo, tropeçávamos simpaticamente em livros. Nunca
foi tão bom tropeçar, quase cair. Fantástico!... Há para todos os gostos, em todos os géneros literários e
em distantes línguas. Alguns com dezenas de anos. Idosos, mas muito bem cuidados e conservados,
muito joviais. Sempre imortais. Até as penas de Eça, Torga, Garrett, Pessoa e Camões... lá tinham deixado registos.
Imaginem, por exemplo, dezenas de estantes e caixotes, confortavelmente
adormecidos nas ruelas, com centenas de books à venda, sem um único vendedor que
pudesse efetuar a transação. Já imaginaram o cenário? Apenas e somente livros,
o valor estampado na lombada e umas caixinhas de madeira para que os potenciais clientes
depositem o valor anunciado. Não falei com a Si e esse respeito, mas acho
que nos veio logo à cabeça – livros “abandonados” nos passeios!? Com uma petite boîte
para deixar o argent? Sem a supervisão dos comerciantes? Sem CCTV? Sem a
Gendarmerie Nationale Belge nas proximidades? Sem os mirones a fitar os bisbilhoteiros transeuntes? E se
fosse num outro qualquer lugar, onde as mãos surgem, por vezes, revestidas de cola?
Apesar de vivermos momentos de agosto, estacionados a sul da Bélgica, a
noite regressou cedo e com ela uma neblina fria, provavelmente chegada de Antuérpia
ou vinda de Roterdão… Com o hotel sob reserva, procurámos aconchegar a coragem
dos estômagos, entretanto quase em standby. Já era um pouco tarde. A partir das
20 horas, é difícil encontrar restaurantes que sirvam. É quase um chacun pour
soi. Desenrasca-te, como se diz por cá.
No campo, o dia começa cedo para se pôr em alvorada. Resta
aos visitantes recolherem aos abrigos e ler, pois claro! Sobrou-nos um chegado
e quente bistro, tipicamente belge. Lá estava ele. Como se estivesse à nossa
espera. Bem iluminado, com grandes montras para atrair a luz e o calor disperso no horizonte, porta semi-aberta... Era ali. Estava paredes meias com a linda faixada de pedra do Mudia, o Museu das Artes.
O espaço, com o interior completamente forrado a carvalho francês, ainda perfumado ao toque de jacintos selvagens, com imensos
e confortantes decores literários, fez-nos perder, por alguns instantes, o
apetite. Estava cheio de clientes. De várias nacionalidades. Gente boa,
simpática e acolhedora. Afinal, havia um propósito que nos unia. Enquanto aguardávamos
por algumas iguarias remanseadas (sim, mas bem poderia ser romanceadas) pela ementa, aproximou-se um agradável casal de
belgas, que, entretanto, ouviu falar português. Conheciam Redu há muitos anos.
Era o seu predileto lugar de férias. Leitura, amor e paisagem, a simbiose
que unia. Ela professora e ele engenheiro. Em anos anteriores, já tinham fraternizado com o carisma de alguns
portugueses, e, por isso, com alguma informalidade facilmente se assomaram. Feitas as honras do encontro, foi com imensa simpatia que nos traçaram um roteiro de lugares
a visitar no dia seguinte. O momento foi quase confessionista, ligeiramente cinematográfico. Acho
que as brilhantes imagens que nos deixaram acabaram, horas mais tarde, por me tirar
alguns instantes de sono. Tal foi a expetativa criada.
Chegados ao petit hôtel, não havia espaço para mais livros. Bolas! Estavam por todo o lado. Por toda a parte. Uma autêntica chuva de letras, sílabas, palavras, frases e capítulos. Receção, sala de refeições, cozinha, corredores, quarto e até nas toilettes. Tudo era literatura. Livros, imagens de escritores, jornais, poemas nas paredes, marcadores... Até os proprietários eram autores de algumas interessantes obras. «Se quiserem conhecer a história de Redu, comprem o livro “Redu – Un Village à Livres Ouverts”», disseram. E foi o que aconteceu. Mais um interessante compêndio de quase 300 páginas para depositar, alegremente e com enorme sorriso, no Espaço Fernando Pessoa, algures nos Almocreves, no coração do Ribatejo.
A visita, no dia seguinte, foi encantadora. Extremamente marcante e memorável. Só visto. Além do Centre Eden, livrarias,
vários conceitos de estabelecimentos comerciais mergulhados na prodigiosa literatura universal, museus, lojas, ateliês de artesanato, tipografias… Uma autêntica biblioteca do tamanho de uma aldeia,
que mais parece um mundo. Uma deliciosa perdição.
Fabuloso, este Roteiro Literário!!
Mário Gonçalves
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