Toc,
toc… Acordei sobressaltado com aquele forte sonido que chegava da porta.
Subitamente, julguei tratar-se de disparos de arma ou rateres que fugissem do
escape de um movimentado bólide nalguma viela das redondezas. Ainda ensonado, de
olhos semicerrados, atordoados por culpa de um pequeno corisco luminoso que
chegava da frecha de uma janela, plantei-me a fitar algum movimento que se
revelasse suspeito. Do leito da minha trincheira, tentei calmamente descodificar
a sonoridade, apesar do cérebro ainda se encontrar a meio-gás, a funcionar quase
a dois tempos. Confesso que, por breves instantes, não sabia muito bem onde tinha
aterrado na noite anterior. A mobília era estranha e os diversos quadros, alinhados
em fila indiana na parede, que mais parecia um desfiladeiro de formigas a
tentar encontrar o caminho de regresso ao formigueiro, tinham aspetos
diferentes dos meus. Até as molduras eram desiguais. Nunca os tinha visto maiores
ou até mais gordos. E voltaram a bater à porta, sem dizerem uma única palavra…
Estranho! És homem ou algum bicho medricas, pensei eu cá para os botões do meu pijama.
De maneira nenhuma!... Enchi-me de coragem, até porque não havia tempo a
perder. A avaliar pelo momento, pelos vistos, o dia prometia e iria ser certamente
longo. Prolongado, seguramente. Nem o corpo nem a alma poderiam permitir
tamanha fraqueza ou hesitação em semelhante ocasião. Para a frente é que era le
chemin du roi, como ainda cantam os franceses. A indecisão durou apenas
alguns segundos. Poucos. Levantei-me da cama com pezinhos de almofada, como se
fosse ao encontro de algo paranormal, e apressei-me para a janela, afastando os
cortinados roxos que alinhavam simetricamente numa parede acinzentada. A luz
amarelada da rua iluminou todo o espaço. Reconheço que, na altura, o objetivo foi
mostrar ao “visitador” que havia gente naquele lugar. De seguida, voei para
junto da porta. Parecia um rouxinol-pequeno-dos-caniços a exibir o peito branco
e a ganhar asas de condor. De ouvido à escuta, mas nada. Nada “memo”!... Enchi
os pulmões de ar, dei dois fortes sopapos no peito, tipo Tarzan em boxer
shorts, e foi então que resolvi abrir. Porém, novamente rien de rien.
Personne. Nem uma sombra. Ainda atordoado, certamente devido ao Jet lag,
que nem a chegada ao Charles de Gaulle soube apaziguar, olhei para o chão e vi
apenas uma pequena caixa de cartão e um postal colorido de boas-vindas. No seu
interior, podia ler-se: “Bem-vindo ao lugar que te viu crescer”. Um fantasma?
Claro que não! Fez-se luz… Estávamos em Brie-Comte-Robert, às portas de Paris,
em casa da família Ratão. Afinal, tinha sido apenas o simpatiquíssimo hospitaleiro
Alberto a bater freneticamente à porta. Este carismático e invulgar nortenho de
Bragança, amigo da família há décadas, quis voltar a surpreender, como era
aliás seu apanágio. Dentro da personalizada caixa, com desenhos e algumas
frases de encher os corações mais melancólicos, estavam à nossa espera dois
legítimos e quentes croissants franceses. Eram estaladiços e laminados
como manda a tradição, e tinham acabado de sair do forno. A dona Conceição
sempre foi uma exímia chef de pastelaria, na arte de fazer croissants. Havia
ainda – dentro da petite boîte – sumos de laranja, café da machine
e o mapa de Paris. Nele, destacava-se a conhecida toile d´araignée, uma
célebre rede de transportes de metro, comboios e autocarros, sobrepostos entre
si, como se fosse precisamente uma teia de aranha.
Parece
que voar a 35 mil pés de altitude dentro de uma caixa de metal com asas pode
ter estes efeitos nalguns cérebros pensadores – Emoções ao rubro e imaginação q.b
para todos os paladares.
O
mapa era o que nos faltava (direi até: salvava) para completar mais uma literária
missão. Na noite anterior, já tínhamos mapeado percursos, confirmado trajetos, afinado
horários e acertado, em comum acordo, os lugares onde deveriam ser degustadas
as tradicionais refeições do dia, servidas nalguns bistrots de Paris.
As minhas viagens literárias sempre foram preparadas e planeadas com algum
rigor, e esta não foi exceção. Tínhamos pensado em tudo. Até mesmo nos temas
musicais de embalar, que acabariam por compor, por prolongados instantes, a romântica
noite de amor, antes da partida rumo ao 20.º arrondissement, na margem direita
do rio Sena. “Morrison Hotel”, o 5.º álbum de estúdio dos The Doors, foi a
escolha acertada. A sugestão partiu da Si por se tratar de um disco composto por
melodias calmas, assentes num estilo tipo blues. Além disso, esse disco foi
lançado em 1970, ano do meu nascimento. Afeiçoada, querida e amorosa esta opção,
não acham?
Com
o pequeno-almoço nas muito elegantes e sorridentes barriguinhas, partimos em
direção ao centro da cidade luz, o ícone mundial da liberdade, abrigo literário
dos maiores escritores da história universal. Comprar um bilhete de metro que
permitia circular sem limitações durante todo o dia, acabaria para ser a opção
mais prática e económica.
Depois
de uma viagem pelo métropolitain de Paris e da paragem obrigatória numa
série de estações, embalados pela musicalidade de alguns artistas de rua e seus
acordeões, chagamos ao destino. A Estação Père Lachaise fica situada lá para os
lados da avenida Gambetta, entre o 11.º e 20.º bairro parisiense, a leste da
capital. É fácil lá chegar, através das linhas 2 e 3 do metro.
Pela
alma poética dos defuntos, fizemos uma importante romagem literária, há muito agendada,
ao Cemitério Père-Lachaise, o mais famoso do mundo. Junto à sua monumental porta
de entrada, toda ela aprumada em estilo neoclássico, certamente para bem
receber os visitantes, encontramos um grupo de franceses que nos indicou uma
loja, mesmo em frente, onde poderíamos adquirir o mapa de todo aquele gigantesco
espaço. Afinal, eram apenas 44 verdes hectares de famosos túmulos, uma antiga propriedade
do sacerdote François Lachaise, conselheiro espiritual do Rei Luís XIV. Sem a preciosa
ajuda dessa planta, seria difícil redescobrir Molière, Oscar Wilde, Daudait,
Balzac, La Fontaine, Proust ou o Nobel Sully Prudhomme, para falar apenas
destes.
O acesso é gratuito. Quem
quiser tomar-lhe um bafo mais musical, é recebido logo à entrada pelo Chopin ou
então só tem de rastrear esta autêntica carta topográfica e subir por um labirinto
de traçados caminhos até ao topo, onde nos podemos cruzar, por exemplo, com “Casta
Diva” e “La Vie En Rose”… Ou melhor, com Maria Callas e Edith Piaf,
respetivamente.
A
manhã era de inverno. Não chovia, mas estava frio. As árvores, aos milhares, repousavam
caladas em sazonal nudez. O silêncio era contaminante e o nosso, rico em
cumplicidade. Havia que aproveitar cada instante. Afinal de contas, “a
literatura não é algo que nos faça feliz, mas ajuda a defendermo-nos da
infelicidade”. Não é, Vargas Llosa?
Logo
a partir da entrada do cemitério, percebe-se que não estamos num lugar trivial.
O cemitério dá nas vistas. Limpo, cuidado e arrumado. Tudo parece ter sido considerado.
Além de encanto, o espaço transmite-nos um repousante conforto. Os bancos de
jardim que dão azo ao descanso, à meditação e até a demoradas leituras, são
disso exemplo.
Nem
sempre se fala no assunto, certamente por roçar, quiçá, um pouco no mórbido,
mas existe, por este mundo fora, a chamada arte tumular, um dom artístico que
poucos conhecem. Por isso, o Père Lachaise é também muito procurado por centenas de
amantes deste primoroso conceito escultório a céu aberto. Lá dentro, estamos assim
na presença de interessantes monumentos arquitetónicos, com a vantagem de
preservarem os restos mortais de muitas eternas personalidades da nossa
História. Dizem os especialistas que este tipo de cultura não deve ser temido. Deve-se contemplar, num continuado silêncio, com ouvidos e olhos de ver. Este valioso
acervo representa quase sempre uma grande diversidade de temas. Do
amor à saudade, passando pelo sofrimento, tristeza, solidão, nobreza e
respeito. Eles são o espelho dos defuntos. Servem essencialmente para dar outro
sentido e completar momentos de vidas passadas.
Estruturar
um roteiro literário sobre o Père Lachaise dava um livro quase do tamanho do
cemitério. Nada melhor do que lá voltar e narrar outro grande vulto da nossa
cultura literária.
Hoje,
ficamo-nos por James Douglas Morrison, mais conhecido por Jim Morrison
(1943-1971). E começamos com ele porque é uma das principais atrações do
Père-Lachaise. A campa do ex-vocalista dos The Doors é das mais visitadas. Das
duas vezes que percorri este magnifico cemitério, o mais apreciado do planeta, cruzei-me
com alguns dos seus fãs. De joelhos, rezavam profusamente. Outros, choravam.
Havia os que murmuravam e até alguns que cantavam baixinho algumas das suas
músicas. A extravagante euforia já levou alguns entusiastas do cantor mais icónico
da história do rock a profanarem, com grafitis de mil e uma cores, o seu túmulo,
o que obrigou a Câmara Municipal de Paris a cercar o lugar com baias e até a
colocar junto à campa um polícia, durante alguns fins de semanas mais
concorridos. Apesar de Jim não ter culpa na matéria, há já quem diga que ele é
o pior hóspede do cemitério. Ali e em todo o mundo ainda existe quem venere
Morrison como um fruto de um ramo cimeiro que a mãe-natureza quisesse
amadurecer eternamente.
Quando
chegamos junto à campa, somos acolhidos por um sarcófago muito simples, como
simples foi também toda a sua vida. Porém, é dos mais concorridos. Os seus fãs
deixam no local, em jeito de uma profundíssima homenagem, um pouco de tudo.
Velas, muitas flores, fotos, pequenos objetos e dezenas de mensagens.
Nem
todos sabem, mas além de estarmos perante uma lenda do Rock, compositor de
ousada performance e incomparável voz, este norte-americano de Melbourne foi
igualmente um exímio pensador e um poeta por excelência. Aliás, muitos críticos
defendem que este artista eletrizante terá sido lançado para a música por
acidente. Infelizmente, ao longo dos anos, a sua lírica tem sido ofuscada pelas
suas fabulosas músicas, o que percebo e entendo, mas não aceito. Ele próprio se
considerou, mais do que uma vez, um escritor, antes de tudo. É nessa perspetiva
que lhe presto hoje tributo neste Roteiro Literário.
Começou
a escrever poesia aos 15 anos, o que terá logo maravilhado familiares e amigos
próximos. Redigiu também imensas cartas e diversos diários. Documentos
recheados de uma formosa musicalidade poética que acabam por ajudar a perceber
a sua invulgar idiossincrasia. Na escola, por ocasião de um teste ao seu QI, obteve
149 pontos. Importa salientar que a partir de 144, o mais alto da tabela QI, é
considerado um génio. E ele era, sem dúvida, de facto, um grande génio. Foi um dedicado
estudante de filosofia, psicologia, teatro e cinema. Isso refletia-se em palco,
por vezes, até exageradamente, ao ponto de ter sido preso um dia por exibir os seus órgãos genitais. Passava grande parte do seu tempo a ler, a
pensar, a refletir sobre o alento da vida e a escrever. Apesar do seu caminho
extravagante e boémio, marcado por elevados consumos de álcool e drogas, Jim Morrison
deixou uma impressionante obra literária, apenas conhecida do grande público já
a título póstumo. Em vida, o autor só assistiu à publicação de dois livros: “The Lords / Notes
on Vision” e “The New Creatures”. Estas duas narrativas, a segunda
mais poética, estão assentes na forma como ele via a vida, nos seus pensamentos
e na sua sociedade a movimentar-se por tempos e lugares.
O
poeta fez sempre uso de uma versificação plurissignificativa e multifacetada. A
articulação que conseguiu impor entre cada vocábulo, acabou por abrir portas a uma multiplicidade de gostos. O objetivo é, certamente, permitir a cada leitor-viajante caminhar pela estrada que
melhor lhe convier. O seu verso é leve, curto e direto, o que contrasta com o
peso da sua descodificação. Esta surge quase sempre muito trabalhosa e muitas
vezes gravativa. Por vezes, também gradativa. Jim Morrison nunca nos ofereceu um "aqui está" (voilà, para os franceses). Um poisson
de mão beijada. Deu-nos a cana para o pescarmos, como nos remete o célebre
adágio japonês.
O
escritor Rogério Almeida, que escreveu o livro “O Dia em que Conheci Jim
Morrison”, assegura também ele que estamos perante uma “narrativa dinâmica e
intrigante”, onde se “joga com o sonho e o pesadelo, o inconsciente e a
realidade, fundindo o pop e o poético, por meio de uma lírica furiosa e
arrebatadora”.
A sua poesia, fortemente marcada
pelo misticismo, reforçou-se a partir da altura em que se mudou para Paris com o
seu amor cósmico, Pamela Couson. Jim Morrison passou a dedicar-se, a tempo inteiro,
à escrita. Embora não se saiba ao certo, mas tudo indica que o escritor terá
sido influenciado pelas presenças de alguns dos seus compatriotas na capital
francesa. O livro “Escritores Americanos Em Paris",
da autoria de Christopher
Sawyer-Laucanno, retrata muito bem, ao longo de mais de 350 páginas, a presença
de muitos dos vultos da literatura americana, a viverem na cidade luz, entre
1944 e 1960. Ernest
Hemingway é disso exemplo.
A
poética de Morrison ainda hoje é avidamente lida e estudada em vários países do
mundo. O escritor conseguiu – em cada frase – galvanizar toda uma geração.
Ainda hoje, continua a fascinar milhões de fãs, nos quatro cantos do planeta.
Começou
por ficar hospedado no Hotel George V, situado na avenida parisiense com o
mesmo nome. Mudou-se depois para o Hôtel de Médicis. Mais tarde, foi uns dias
para o l' Hôtel, situado na Rue des Beaux Arts. Curiosamente, pernoitou
algumas noites no segundo andar desse hotel, precisamente no quarto onde morreu
Oscar Wilde. Até que alugou um apartamento. Era um terceiro andar, situado no n.º
17 da Rue Beautreillis, entre o rio Sena e a Place de La Bastille. Uns largos
anos antes, tinha vivido nessa rua, no n.º 22, o poeta Charles Beaudelaire.
Assim como o dramaturgo francês, Victorien Sardou, no n.º 16.
Como
recordação da sua presença em Paris, correm na web algumas fotografias de Jim
Morrison e Pamela, tiradas a norte da capital, em Saint-Leu-d´Esserent, por
Alian Ronay, um fotógrafo amigo do poeta-cantor. Surge sempre em total
cumplicidade com o seu grande amor. Consta que são as últimas tiradas ao poeta.
Infelizmente, morreu muito novo. Tinha apenas 27 anos. Assassinato, suicídio, overdose ou
ataque cardíaco? Teorias da conspiração surgiram em catadupa, até porque os amigos
mais próximos só conseguiram ver o caixão quando este já estava lacrado. Ainda
hoje não se sabe ao certo o que terá acontecido, a 3 de julho de 1971, na
banheira do seu apartamento. Talvez tenha sido uma má aposta de Morrison ter-se
mudado para Paris, numa altura em que a cidade estava verdadeiramente empestada
por lotes de heroína em elevado estado de pureza. Veneno que acabaria por matar,
três anos mais tarde, por overdose, a sua companheira, Pamela Couson.
Partiu
o homem e o seu incalculável talento, mas ficou a obra. E essa, nunca morre!!
“Se a minha poesia pretende atingir alguma coisa, é libertar as pessoas dos limites
em que se encontram e que se sentem.” (Jim Morrison)
Aconselha-se
este Roteiro Literário.
Mário
Gonçalves
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